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‘Ainda não há proeminência do poder civil no Brasil’, afirma Carlos Fico

Notório conhecedor da ditadura e da relação entre política e caserna, o historiador Carlos Fico avalia que os militares passam hoje por um escrutínio que pode levar a condenações inéditas por tentativa de golpe. Com livros publicados sobre o regime instaurado há 60 anos, Fico finaliza este ano “Utopia autoritária brasileira”, que vai explorar a história dos anseios intervencionistas no país.

Como avalia a decisão do presidente Lula de evitar cerimônias sobre os 60 anos do golpe? O que ela diz sobre a forma como ele lida com os militares?

A conciliação com os militares eu até lamento, mas compreendo, porque o governo foi eleito por pequena margem. Já a diretriz de não ter cerimônias sobre os 60 anos eu acho realmente condenável. Lula sempre teve a postura de buscar conciliação. Na Presidência, é compreensível que se busque governabilidade, e os militares brasileiros ao longo de toda a História foram um fator de instabilidade. Há também uma fragilidade do Ministério da Defesa. A pasta, cuja concepção foi muito importante, foi criada com enormes dificuldades pelo FHC. Os ministros sempre foram frágeis porque nunca conseguiram resolver a proeminência do poder civil sobre os militares, os comandantes às vezes ainda têm mais força. No Brasil, não temos ainda a proeminência do poder civil, que é a base de qualquer democracia.

O senhor fala bastante do problema que é o artigo 142. Como acabar com isso?

É muito difícil, porque vem desde a Proclamação da República. Tivemos mais de uma dezena de tentativas de golpe e isso precisa ser enfrentado com um gesto muito forte: dar nova redação ao artigo 142. Esse artigo está presente com outros números em todas as Constituições republicanas, e a atribuição aos militares da garantia dos poderes constitucionais é excessiva e indevida. É a única coisa que poderia ser feita. Quem faz a crítica de que só isso não impediria os militares de tentarem golpe não entende a cabeça dos militares. Eles sempre interpretaram essa atribuição da garantia dos poderes como uma licença para tutelar a sociedade.

A ideia de “poder moderador” é a base disso?

Na Constituição de 1891, aconteceu uma coisa terrível que foi essa redação do artigo 14, que seria o atual 142. Os militares conseguiram colocar essa atribuição excessiva em substituição ao que havia na Constituição do Império. Durante o Império, o imperador tinha o chamado poder moderador, que zelava, cuidava dos demais poderes. Quando a Constituição diz que as Forças têm a atribuição de manter os poderes constitucionais, os militares passam a interpretar equivocadamente como substituição do poder moderador. Temos que mudar o texto via PEC.

Por que as Forças não executaram o plano de golpe do bolsonarismo?

Provavelmente pela percepção, o medo dos generais de que não havia apoio popular e de que haveria consequências nas relações exteriores, no comércio internacional, e sobretudo de que haveria alguma reação popular. Embora Bolsonaro contasse com simpatizantes radicalizados, existiam e ainda existem setores do eleitorado contrários a isso. Esses militares que não apoiaram o golpe de Bolsonaro, embora provavelmente tivessem simpatia pelo bolsonarismo, ficaram sem ter como promover um golpe. Em 1964, a campanha de desestabilização de João Goulart foi tão intensa que havia a suposição de que seria possível enfrentar qualquer resistência. Acabou que não houve resistência alguma.

O escrutínio pelo qual passam os militares, com a investigação sobre a tentativa de golpe, é inédito?

Em relação a crimes comuns, o Superior Tribunal Militar costuma punir oficiais que não são generais. Coisa muito distinta é quando envolve generais, e outra distinção é quando envolve tentativa de golpe. Temos uma tradição brasileira que é a busca pela anistia. Agora vemos um movimento nesse sentido, mas parece que pela primeira vez esses militares serão punidos. E, se houver punição com sentença transitada em julgado pelo STF, vai ter algo ainda mais inédito: o julgamento moral pelo STM da declaração de indignidade para o oficialato desses generais. Se forem condenados, eles perdem as patentes, as condecorações, que é o revés mais grave que um militar pode ter.