A tragédia que arrasou o município de Petrópolis, na Região Serrana do Rio, é mais um capítulo de um problema crônico brasileiro que resulta em perda de vidas e danos materiais. Quase 4 mil pessoas já morreram por causa de deslizamentos de terra no Brasil nas últimas décadas: foram 3.758 óbitos desde 1988 até 8 de fevereiro de 2022, segundo levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).
As mais de 180 vítimas do último temporal em Petrópolis, na semana passada, nem entram nesta conta. Desastres do tipo estão ligados à ocupação das cidades, à destruição ambiental e às mudanças climáticas em curso. O descaso do poder público diante dessas evidências cria o cenário perfeito para que o problema se repita todos os anos, em maior ou menor intensidade, principalmente durante a temporada de chuvas, no verão.
Mudanças na forma de usar o território e políticas ambientais são a chave para prevenir as tragédias. Essa receita é conhecida há décadas por especialistas e pelo poder público. Na prática, porém, ações concretas esbarram em custos elevados e, principalmente, na falta de vontade política de atacar o problema.
Em Petrópolis, a tragédia da semana passada reedita desastres ocorridos no município em anos anteriores. Em 1988, foram 171 vidas perdidas por causa de um temporal que atingiu a cidade em fevereiro. Em 2011, houve mais dezenas de mortes, no maior desastre do gênero na Região Serrana. Vítimas dos deslizamentos de terra agora já haviam perdido parentes anos atrás, em tragédias da mesma natureza, na mesma região.
Conforme o levantamento do IPT, o ano com mais mortes por deslizamentos foi 2011, quando quase mil pessoas perderam a vida nos municípios de Petrópolis, Nova Friburgo e Teresópolis. Na sequência, aparecem os anos de 1988 (295 mortes), 2010 (242) e 1996 (238). O relatório do IPT não abrange óbitos por enchentes e inundações. Os dados foram obtidos por meio de levantamento na Defesa Civil, imprensa e fontes acadêmicas.
Autor do banco de dados, o geólogo e pesquisador do IPT Eduardo Soares de Macedo diz que Petrópolis se tornará a cidade com mais mortes por deslizamentos no País nos últimos 34 anos após a tragédia da última semana. “Infelizmente, é a campeã nacional.”
Além das mortes, desastres ambientais causam prejuízos materiais e formam uma multidão de famílias sem ter onde morar. Conforme o Atlas Digital de Desastres no Brasil, houve 18.551 ocorrências de inundações, enchentes, enxurradas e deslizamentos entre os anos de 1995 e 2019, resultando em 6,629 milhões de desabrigados e desalojados e 67,516 milhões de pessoas afetadas. Já os danos materiais são calculados em R$ 59,360 bilhões, em valores corrigidos. Se considerar outros desastres, como incêndios florestais, os prejuízos são ainda maiores.
A situação é de conhecimento público. Um documento da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, de 2021, por exemplo, aponta que os impactos são maiores nas cidades por causa das “interações dos extremos climáticos com a infraestrutura associada à crescente população urbana, bem como com as atividades econômicas”. A transformação do uso do solo em áreas rurais e periféricas agrava os riscos.
“Nossas cidades são verdadeiras bombas socioecológicas urbanas explodindo nas periferias”, diz o arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, professor do Instituto da Cidade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para o especialista, é preciso planejamento das cidades e territórios. E o ideal seria sistematizar isso em uma política nacional, com ação para o Brasil todo.
Conhecimento técnico sobre as regiões de risco não falta, dizem especialistas. “A gente já tem mais de mil municípios com mapeamento de risco de áreas urbanas. Já tem os critérios, sabe onde tem risco alto e moderado, temos instrumentos para fazer sondagem do solo, só é preciso realizar as ações e os investimentos”, afirma o urbanista da Unifesp.
É neste momento que surgem os entraves políticos, diz Antonio Guerra, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Qual governo quer ter o desgaste político de remover pessoas, derrubar casas e construir em outras áreas?”, indaga ele, que já fez mapeamentos de risco para municípios brasileiros.
Para Guerra, políticos apostam na chance de que as tragédias só aconteçam no mandato do próximo governante e justificam não divulgar mapas de risco à população sob o argumento de não criar pânico. Ele lembra que as universidades têm feito trabalhos consistentes na área de mapeamento de riscos de deslizamentos e outros desastres. “As prefeituras recebem isso, praticamente a custo zero, e não usam.”
Pensar em políticas de habitação impõe atacar questões sociais. “O que leva alguém a morar em área de risco? A falta de dinheiro. Aquela comunidade vai crescendo e a obrigação do poder público é não deixar, principalmente em topos de morro e perto de leitos de rios”, diz Alessandro Azzoni, especialista em Direito Ambiental.
Moradora da Chácara Flora, em Petrópolis, a dona de casa Nária Maria de Paulo, de 73 anos, já quis deixar o lugar onde vive por medo de deslizamentos. “Aqui na minha casa caía uma terra daqui, uma terra dali, pedra, mas nós sempre ficamos, porque não tínhamos para onde ir”, conta.
A casa já havia sido embargada pela Defesa Civil. Agora, a varanda está colada a uma encosta que deslizou na terça. O marido de Nária, de 73 anos, reluta em se afastar do local onde vive desde a infância. “Ele está arrasado. Envelheceu muito por causa disso aqui.”
Quase um quinto do território de Petrópolis abrange áreas avaliadas como de risco alto e muito alto para deslizamento, enchente e inundação, segundo o Plano Municipal de Redução de Riscos, divulgado em 2017 pela prefeitura. Conforme o documento, a cidade tem 27.704 moradias em locais de alto e muito alto risco. Ali, cerca de 25% das famílias teriam de ser removidas.
Na Servidão Frei Leão, área perto do Morro da Oficina e onde cerca de 80 casas foram soterradas, o pedreiro Osvaldo Valentim Filho, de 50 anos, relata incertezas sobre o futuro. “Se a gente sair daqui, até falarem onde a gente vai ficar, como vai ser? É complicado, não tem outro lugar para ir.” Ele disse que nunca teve muito medo, mas “no alto do morro nunca se fica tranquilo”.
Resolver o problema de moradia demanda envolver a população nos processos de realocação e passa, ainda, por educação ambiental. “Não dá para achar que pagando bolsa aluguel de valor baixo vai resolver o problema de moradia da pessoa”, diz Nakano. O mais adequado, diz, é oferecer locais seguros, de preferência perto de onde as famílias moram. No caso de Petrópolis, a dificuldade cresce, uma vez que a cidade está quase toda erguida em morros e várzeas de rios. “Praticamente não há área plana”, aponta Macedo, do IPT. “A solução é repensar toda a cidade, fazer uma cidade nova.”
Áreas de encostas, de onde famílias devem ser retiradas, também precisam ser recuperadas, “caso contrário outras famílias vão para o mesmo lugar”, diz Azzoni, membro da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo.
Ao contrário disso, porém, “enxugamos gelo com obras”, afirma Marcos Barreto de Mendonça, especialista em Geotecnia e professor da Escola Politécnica da UFRJ. Instrumentos como contenção de encosta até podem ajudar de forma emergencial, mas são paliativos, segundo os especialistas.
Repensar a ocupação das cidades significa, ainda, transformá-las em espaços mais permeáveis. Grande parte do problema está no fato de que, ao longo do processo de urbanização, áreas verdes foram cobertas por cimento e asfalto. E os rios acabaram assoreados e sufocados para dar lugar a avenidas.
Quando chuvas fortes atingem as cidades, a água não tem para onde correr: por isso, arrasta morros, casas e carros. Tempestades tão intensas e localizadas como a que atingiu Petrópolis estão se tornando mais frequentes com as mudanças climáticas – e as cidades precisam estar preparadas para isso. Muitas delas, porém, sequer têm saneamento básico nas encostas, o que potencializa os riscos de erosão.
“Precisamos ter planos de adaptação às mudanças climáticas que saiam do discurso, propostas que não tenham medo de quebrar avenidas”, afirma Fernando Rocha Nogueira, coordenador do Laboratório de Gestão de Riscos da Universidade Federal do ABC (LabGris). Outros países já adotam estratégias mais ousadas diante do problema.
Em Seul, na Coreia do Sul, por exemplo, um rio urbano coberto por estradas foi descanalizado e passou a fazer parte da paisagem, em uma estratégia para ampliar a capacidade de vazão durante enchentes. Em Nova York, após a passagem do furacão Sandy, em 2012, foram anunciados investimentos de US$ 20 bilhões – parte deles, para a ampliação de áreas verdes permeáveis.
Trabalhos de recuperação ambiental e remoção de famílias, no entanto, não terminam em poucos meses – o que torna essencial mitigar os riscos urgentes, com sistemas de alertas que funcionem de fato. Em países como o Japão, onde há uma cultura de prevenção induzida pelo histórico de desastres, os treinamentos para entender os avisos começam na infância e há investimentos nesse trabalho.
Aqui, um trabalho preventivo das Defesas Civis locais, em parceria com a população, poderia ajudar, mas, em muitos casos falta orçamento e até viaturas para fiscalizar áreas de risco. “Muitas vezes é um serviço mal remunerado e há muita troca a cada eleição”, diz Victor Marchezini, sociólogo de desastres e pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
O Ministério do Desenvolvimento Regional afirma ter em 2022 R$ 3,5 milhões (em orçamento e emenda parlamentar) para treinamento das Defesas Civis estaduais, municipais e do sistema federal. E diz fazer convênios com universidades federais para cursos.
Já a prefeitura de Petrópolis afirma que a “responsabilidade do município na prevenção de desastres das chuvas é compartilhada entre os entes federados” e destaca ações como entrega de casas populares, contenções de encostas e capacitações com moradores. “A ocupação das áreas de risco é um problema grave e que ultrapassa os limites do município”.
Contra o Problema
- Mapeamentos de risco – Municípios têm de saber quais são as áreas mais vulneráveis e qual a parcela da população está mais exposta a desastres, como deslizamentos de terra e inundações. Boa parte das cidades já tem mapas de risco, mas esses documentos acabam engavetados.
- Política habitacional – Diante do mapeamento, é preciso investir em ações concretas para retirar as famílias de áreas de risco. Isso deve ser conduzido com participação popular. Políticas de remoção são mais efetivas quando envolvem a comunidade e oferecem alternativas viáveis à população, de preferência perto de onde as famílias moravam anteriormente.
- Meio ambiente – Obras de contenção de encostas, por exemplo, são paliativas para um problema ambiental mais amplo. Ao longo da ocupação, as cidades se tornaram impermeáveis. É preciso, segundo especialistas, aumentar a área verde. Criar parques, substituir avenidas por árvores e renaturalizar rios são medidas para criar o que cientistas chamam de “cidades-esponja”. Ao mesmo tempo, é preciso investir em reduzir as emissões. Mudanças climáticas estão por trás de temporais cada vez mais intensos e frequentes.
- Sistemas de alerta – Remoção de casas e ampliação da área verde podem levar anos. Enquanto isso, quem ainda está em áreas de risco deve ser avisado sobre perigos por meio de alertas, como sirenes ou mensagens no celular. Parte das cidades já tem esses sistemas, que nem sempre funcionam bem. É importante capacitar agentes de Defesa Civil, criar rotas de fuga e treinar a população frequentemente. Ao mesmo tempo, é preciso investir em ciência para melhorar as previsões de tempestades, a fim de tornar esses alertas cada vez mais certeiros.
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