O Brasil teria encerrado 2021 com uma dívida bruta de 63,6% do PIB (Produto Interno Bruto), caso os benefícios tributários tivessem ficado em 2% do PIB entre 2012 e 2021, segundo cálculos do governo obtidos pela Folha.
O valor é 20,7% menor do que o patamar efetivo da dívida do país, que fechou o ano passado em 80,3% do PIB —nível considerado elevado para economias emergentes como o Brasil.
O exercício de comparação foi feito por técnicos do Ministério da Economia para obter um panorama da situação das contas públicas, caso o país tivesse seguido um regime de maior controle das renúncias de receitas.
A própria pasta já fez inúmeros diagnósticos sobre problemas e distorções de vários desses incentivos, que consomem mais de R$ 300 bilhões ao ano. Mas as investidas para reduzir os valores esbarram em resistências políticas e lobby de setores empresariais.
O Congresso e a ala política do governo Jair Bolsonaro (PL) têm inclusive ido na direção contrária, ampliando os benefícios tributários. Só no ano passado, foram instituídas 22 novas desonerações, que drenaram R$ 5 bilhões da arrecadação federal.
Neste ano, seu impacto será ainda maior, de R$ 13,2 bilhões. Grande parte vem da prorrogação da desoneração sobre a folha de pagamento de 17 setores, sancionada por Bolsonaro no último dia de 2021 sem medida de compensação.
Dessas desonerações, nove são consideradas gastos tributários, uma modalidade especial que representa uma despesa indireta do governo para tentar impulsionar a atividade econômica ou atender a objetivos sociais.
Entre 2005 e 2015, durante os governos petistas, esse tipo de política ganhou espaço e alimentou o lobby bem-sucedido de empresários em busca de benesses a seu respectivo setor.
Como resultado, os gastos tributários saltaram de 2% em 2005 para 4,5% do PIB em 2015, contribuindo para dilapidar a arrecadação federal e aprofundar o rombo nas contas.
Desde então, diversas tentativas de redução desses benefícios naufragaram em meio à pressão política dos setores beneficiados. Até 2020, eles seguiam próximos dos 4% do PIB.
Já a instituição de novos benefícios tem sido uma válvula de escape diante da restrição imposta pelo teto de gastos, âncora fiscal do governo que limita o crescimento das despesas à variação da inflação.
Se por um lado as despesas estão travadas no teto, por outro a regra fiscal não representa obstáculo à criação de novas renúncias.
Em uma das investidas para apontar distorções nos gastos tributários, a Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia sugeriu, em 2019, reverter parte da desoneração da cesta básica, direcionando o recurso poupado para o Bolsa Família, posteriormente substituído pelo Auxílio Brasil.
Segundo os técnicos do órgão, a medida seria mais eficiente no combate à pobreza, pois a desoneração da cesta acaba incluindo produtos consumidos apenas por famílias de maior renda, como queijos ou filé de salmão. A mudança, no entanto, não avançou.
Outro estudo de 2021 apontou problemas na ausência de limites para deduzir despesas médicas do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física), o que acaba beneficiando o andar de cima, que tem condições de arcar com plano de saúde ou atendimento médico particular.
O economista Alexandre Manoel, economista-chefe da AZ Quest e ex-secretário de Avaliação e Planejamento da Economia, afirma que o Brasil vem há cinco anos centrando os esforços de ajuste fiscal no controle das despesas, um receituário que dá sinais de exaustão.
Para ele, uma evidência disso é o debate eleitoral, em que a maior parte dos candidatos defende, com suas particularidades, maiores gastos sociais e investimentos.
“Parece ser o máximo de ajuste fiscal que a gente consegue. Com esse ajuste do lado da despesa, que não foi pequeno, com essa diminuição das despesas discricionárias, a máquina já está no limite”, diz.
Enquanto isso, segundo Manoel, houve poucas medidas de ajuste do lado da receita. “Há políticas com efeitos, do ponto de vista de geração de emprego, pequenos, pífios ou inexistentes. Os benefícios tributários foram concedidos em sua maior parte sem metas estabelecidas e sem controle”, critica.
O economista, porém, reconhece as dificuldades políticas para avançar nessa agenda, que tem “benefícios difusos” para a sociedade, mas afeta interesses concentrados de alguns segmentos com poder de pressão.
No ano passado, em meio às negociações para a prorrogação do auxílio emergencial a vulneráveis prejudicados pela pandemia de Covid-19, o ministro Paulo Guedes (Economia) e sua equipe conseguiram inserir em uma PEC (proposta de emenda à Constituição) um dispositivo que obrigava o governo apresentar um plano de redução gradual dos gastos tributários.
Pelo texto, o plano deveria ser suficiente para levar esses incentivos a 2% do PIB em oito anos.
Na votação, o Congresso blindou uma série de benefícios, como a Zona Franca de Manaus, os benefícios a entidades filantrópicas e a desoneração da cesta básica, entre outros. A soma das exceções alcançava cerca de 2% do PIB —metade dos incentivos existentes.
Sob essas restrições, o governo frustrou as expectativas de um corte mais agressivo. Apresentado em setembro do ano passado, o plano desidratado listava supostos cortes em benefícios que, na verdade, já tinham data para acabar.
Na época, uma interpretação mais benevolente de órgãos jurídicos do governo sugeriu a meta de corte deveria incidir apenas sobre os 2,06% do PIB em gastos tributários não excepcionalizados pelo Legislativo. Na prática, a obrigação legal era um corte de só R$ 4,2 bilhões em oito anos.
O Congresso também patrocinou uma queda no volume contabilizado de benefícios tributários ao aprovar uma lei, no ano passado, acabando com o status de gasto tributário do Simples Nacional e do MEI (microempreendedor individual).
Esses regimes especiais permitem aos microempreendedores e às empresas com receita bruta anual de até R$ 4,8 milhões recolher menos tributos e de forma simplificada. No projeto de Orçamento de 2022, a renúncia conjunta era calculada em R$ 86 bilhões —entre 0,8% e 0,9% do PIB deste ano.
Descontado esse valor, o gasto tributário estimado para o ano caiu a 3,3% do PIB, embora o Simples e o MEI continuem existindo.
Para tentar vencer as barreiras políticas, Manoel propõe uma “reversão horizontal” dos benefícios, com aumento de alguns tributos para minimizar o tamanho do incentivo às empresas beneficiadas.
Ele cita como exemplo o corte linear nas alíquotas do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), anunciado pelo governo no fim de fevereiro. Embora seja uma redução de tributo, significou um benefício menor à Zona Franca de Manaus, que já tinha seus produtos isentos do imposto. A medida irritou parlamentares da bancada do Amazonas, que tentam até hoje uma reversão.
“A discussão tem que ser feita de maneira clara. De maneira geral, os candidatos estão prometendo mais Estado. Tem que dizer de maneira clara que isso, embora as pessoas não queiram ouvir, significa mais carga tributária”, afirma Manoel.
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