Dezenas de milhões britânicos sentem-se órfãos. A morte da rainha nesta quinta-feira, aos 96 anos, marca o fim de uma era. Em um país cada vez mais polarizado, Elizabeth Alexandra Mary Windsor era ponto pacífico, a face que ainda unia a grande maioria da população: ricos e pobres, monarquistas e até alguns republicanos. Seu reinado — o mais longevo da história britânica — durou sete décadas. Atravessou o período da Guerra Fria, sucessivas crises políticas e econômicas, entrou e saiu da União Europeia, enfrentou uma pandemia global.
“A rainha morreu pacificamente em Balmoral nesta quinta-feira”, diz a nota do Palácio. “O rei [Charles] e a rainha consorte [Camilla] continuarão em Balmoral nesta noite e retornarão a Londres amanhã.”
Lilibeth, como era chamada pelo pai, o rei George VI, de quem herdou a Coroa em 1952, quando tinha apenas 25 anos, se tornou para os súditos símbolo de força e estabilidade em um mundo onde tudo parece tão efêmero. Era respeitada e aprovada por 75% dos britânicos, segundo números de uma pesquisa feita no segundo trimestre deste ano pelo instituto YouGov.
Foi após a morte do consorte, o mais longevo da história britânica, em 9 abril de 2021, que o Reino Unido finalmente se deu conta da fragilidade da soberana. Vestida de preto, apareceu sentada sozinha em um dos bancos de madeira da capela do Castelo de Windsor. Estava isolada do resto da família durante as exéquias por conta do coronavírus. A imagem estampou as primeiras páginas dos jornais do mundo inteiro. Solitária e triste, era apenas uma nonagenária de carne e osso que enfrentava o luto após um casamento de 74 anos.
Quando ficou viúva, foi buscar refúgio em Windsor, sua residência favorita, o mais antigo castelo ocupado do mundo, onde viveu seus últimos dias de casada. Dali passou a tremular o pavilhão da Casa Real. A monarca resolveu não voltar mais para o Palácio de Buckingham, apenas para compromissos inadiáveis. Ela chegou a retomar as atividades oficiais, mas aparições públicas foram se tornando cada vez mais raras.
Durante todos esses anos, Elizabeth II parecia inabalável. Por dever de ofício, guardou para si opiniões políticas e posições sobre a maioria dos temas considerados sensíveis. Talvez por isso tenha cometido poucos erros. Nem mesmo os escândalos da família real — e não foram poucos — mudavam a atitude da monarca. Em 1992, depois da separação do príncipe Charles e do príncipe Andrew e de um incêndio em Windsor, admitiu em público que vivia um “annus horriblis”. Mal sabia ela que depois viriam a morte da princesa Diana, e uma imensa comoção nacional e internacional, em 1997, acusações de pedofilia contra Andrew, em 2020, e o afastamento do neto, o príncipe Harry, das funções oficiais do palácio e da família real após seu casamento com a atriz americana divorciada Meghan Markle.
Philip sempre foi a face mais humana do casal. Eram dele as gafes, as manifestações de emoções ou vontades que ela não se permitiu. Elizabeth II dançou conforme a música, como se esperava dela. Encontrou 12 dos últimos 13 presidentes dos Estados Unidos. Viajou o mundo. Foi até o Brasil em 1968, na única visita de uma soberana britânica à América Latina.
O mistério sobre o que terá se passado na cabeça dessa rainha durante tantos anos ocupou o imaginário coletivo britânico e mundo afora. Foi a deixa para tantas interpretações no cinema, no teatro e na televisão. O mundo dos Windsor fascina.
Elizabeth II viveu presa a um conto de fadas, o que pode ser bom ou ruim. O mais perto que o cidadão comum terá chegado da rainha foi a realização do documentário “Royal Family”, de 1968, que garantiu acesso sem precedentes às rotinas de trabalho e lazer da soberana. Ela e Philip tiveram quatro filhos (Charles, Anne, Andrew e Edward), oito netos e 12 bisnetos.
A rainha foi pop. As cores dos vestidos e chapéus estavam sempre nas páginas. A escolha das joias da rainha também tinha sempre mensagens a serem lidas pelos jornalistas especializados na cobertura da Casa Real. Quem nunca quis saber o que carregava nas bolsas de mão que usava para se comunicar com os auxiliares próximos em meio a agendas oficiais. Um gesto indicava a hora de encerrar uma audiência. Estava em Ascot, não muito longe de Windsor, todos os anos acompanhando de perto o desempenho de seus cavalos, uma das suas paixões da vida inteira, nas badaladas corridas de verão que reúnem a aristocracia britânica e ricaços do mundo inteiro.
Tornou-se tradução do soft power britânico. Está na bonequinha da loja de suvenir que dá adeus com a ajuda da luz solar, ou canecas de louça que marcam suas datas comemorativas. Afagou chefes de Estado ou de governo importantes para o reino. Como todo britânico, também tinha suas doses de senso de humor. Participou da inusitada cena de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres em que recebe ninguém menos do que 007, na pele de Daniel Craig. James Bond foi buscar a monarca no Palácio de Buckingham, de onde simulam sair de helicóptero para pousar no estádio olímpico. A rainha está ainda em uma galeria de arte em Windsor. No holograma do quadro “Aprovação real”, de Nusia Mullingan, com a bandeira Union Jack de pano de fundo, usando uma tiara de diamantes e tradicional colar de pérolas de três voltas, ela pisca para o espectador. A obra sai pela bagatela de 1,295 libras (quase R$ 10 mil). O pagamento por ser parcelado em até 12 vezes. É a monarca acessível para os súditos.
Na escrivaninha de Winston Churchill, em Chartwell, a residência do primeiro primeiro-ministro de Elizabeth II (1940-1945 e 1951-1955) — foram 15, incluindo a recém-empossada Liz Truss — ainda está em lugar de destaque a foto da monarca no dia de seu casamento com Philip, dois anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Por sinal, o que se especula é que a soberana não tenha conseguido disfarçar o xodó por Churchill e Harold Wilson (1964-1970 e 1974-1976).
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