O serviço público entrou de vez na transformação digital na última década. O processo foi ainda mais agilizado com a pandemia, criando uma virtualização obrigatória. E dentro desse processo, a capacitação do profissional público passou a ser tão essencial quanto as novas tecnologias voltadas para as políticas públicas.
“Quando se fala em tecnologia, em uma agenda de transformação digital, muitas vezes, caímos na falácia e no erro de pensar só em equipamentos, em tecnologia. Mas essa agenda de inovação e transformação digital começa por pessoas”, diz Tadeu Barros, diretor-presidente do CLP (Centro de Liderança Pública).
“Essa agenda é como se fosse uma cebola, com camadas, e o núcleo da cebola são pessoas. Precisamos de gente bem preparada, que entenda do negócio, para que, num segundo momento, essas pessoas, conhecendo as necessidades do setor público, as demandas sociais, desenhem processos. A partir disso, vem a última camada, que é a tecnologia”, afirma.
Esta reportagem faz parte da série Profissional Público do Futuro, iniciativa do núcleo Vida Pública em parceria com a República.org, entidade dedicada à melhoria da gestão de pessoas no serviço público.
Para Virgílio Almeida, professor do departamento de ciência da computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), é cada vez mais necessário que o setor público conte com servidores que conheçam e saibam trabalhar com a ciência de dados e também com a inteligência artificial, que cresce em ritmo acelerado.
“O governo precisa treinar, capacitar os servidores públicos, não só os que trabalham com o dia a dia, mas também os que estão em posições estratégicas, em altos cargos. Precisa trazer esse mindset de dados, de inteligência artificial, para tornar o serviço público melhor, mais efetivo”, diz o professor.
Hoje, o governo federal, por meio da Enap (Escola Nacional de Administração Pública), tem desenvolvido cursos em busca do aperfeiçoamento de competências e habilidades do servidor. Essa necessidade cresceu com a pandemia.
“Quando você pensa no dia a dia do servidor, a pandemia teve o papel de trazer o novo mundo. A gente tinha o mundo semi-informatizado na repartição, foi jogado para o mundo virtual e todo mundo teve que aprender”, diz Roberto Pojo, secretário de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.
Outros órgãos também procuram capacitar servidores para a adequação com as novas tecnologias, como na saúde, principalmente com a implantação da telemedicina.
A Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) conta com programas voltados a profissionais da rede pública e também aqueles da rede privada, que muitas vezes atendem pelo SUS.
“Hoje em dia a gente não consegue mais falar em saúde fora do digital. Sempre vai ter um prontuário eletrônico, um exame que está dentro de um banco de dados, a carteira de vacinação digital, o ConectSUS [aplicativo que registra toda a trajetória do usuário no SUS], já existe toda essa cultura”, diz Claudia Galindo Novoa, coordenadora do Núcleo Estadual Telessaúde São Paulo da Unifesp.
“Estamos ajudando esse profissional que entra a continuar sendo treinado, e aquele que já está no serviço público, que, talvez, não tenha entrado de uma forma já digital, que não fique para trás”, declara.
Além da capacitação, também há modelos de programas voltados à gestão do funcionário dentro do serviço público. O Estado promove um modelo de acompanhamento em que o servidor possa apresentar melhores resultados, por meio do programa de gestão de pessoal. Ele foi criado em 2015 e tem passado por aprimoramento, segundo Pojo.
“O programa tem por objetivo modificar o processo de gestão na administração, sobretudo substituindo o controle de frequência por monitoramento de resultados. Ele surge muito voltado para a época da adoção do teletrabalho, mas a partir de 2019 passamos a fazer uma discussão de ele ser ampliado para ter uma administração melhor.”
“Em vez de eu ficar controlando quantas horas fica sentado na cadeira dele, eu passo a gerenciar o resultado de entregas. É uma maneira muito mais efetiva”, afirma.
A carioca Tânia Scaffa e Adura, 48, moradora da zona sul de São Paulo, é servidora da Receita Federal desde 2004. Tem trabalhado em home office desde o início da pandemia, e diz estar adaptada com o programa de gestão.
“Tem algumas regras que precisam ser seguidas. Além de trabalhar as 40 horas semanais, a gente também tem uma meta. Fiz um programa de gestão para o ano inteiro. Todo final de mês há um fechamento desse programa para ver se completaram as horas que tem que trabalhar e os processos que tem que fazer”, diz a servidora.
Ela poderia voltar ao prédio da Receita com o fim do isolamento, mas teve a opção de continuar o trabalho em casa, onde entende ter melhor desempenho.
“Conversando com os meus colegas, percebo que a gente está rendendo mais, entregando mais trabalhando em casa. Fomos muito bem treinados, não preciso de ninguém para fazer meu trabalho. Às vezes, claro, aparece uma dúvida ou outra, aí chama um colega, a chefia, discute, faz reunião. Temos um suporte bom.”
Outro ponto discutido dentro do avanço das novas tecnologias é o quanto a automação vai afetar no preenchimento de vagas dentro do serviço público.
“A adoção da tecnologia sempre vai ter um impacto na força de trabalho, não tem como fugir disso. Vale tanto para o setor privado quanto para o público. A obsolescência é cada vez mais rápida. Ainda tem na administração pessoas que foram contratadas para serem datilógrafas, ascensoristas. Demoraram 20 anos para entrar em obsolescência. Hoje o ciclo é menor”, diz Pojo.
“Parte da força de trabalho se adapta com as novas tecnologias, e parte continua em serviços que não foram automatizados até que vá se aposentar”, relata.
Segundo o professor Virgílio Almeida, muitos servidores que ingressam hoje no serviço público já têm a questão digital como parte das suas capacidades de cognição, de execução do trabalho. Mas há uma geração de servidores mais antigos, que poderiam ser chamados de ‘não digitais’.
“A transformação digital tem inúmeras vantagens, mas pode ter efeitos indesejados, como a exclusão, o desemprego, mas tudo isso tem que ser trabalhado por meio de políticas públicas. O governo deve buscar a automação, mas uma automação que tenha um impacto positivo, seja na inclusão, no emprego”, diz o professor.
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