Desde o quilombo dos Palmares, o poder de influência das mulheres já era grande dentro dessas comunidades. Hoje, mais de 400 anos após a fundação do mais emblemático quilombo brasileiro, a herança é mantida, e mulheres continuam na linha de frente em suas comunidades.
“É uma herança das experiências africanas, a gente tem que lembrar que os primeiros quilombos surgem na verdade na África, não na América. Os primeiros quilombos surgem [aqui] justamente nesse contexto de aprisionamento dos africanos para virem para as Américas, você tem essas fugas”, explica Ynaê Lopes dos Santos, professora de história da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Um dos papéis mais marcantes na história das mulheres nos reinos africanos – que se estende para os quilombos nas Américas – são aqueles desempenhados pelas mães dos reis, grandes conselheiras e braço direito de seus filhos.
A dinâmica desses reinados consistia em um sistema de rodízio entre várias famílias reais, e não em uma monarquia hereditária. As mulheres, neste caso as mães, eram figuras de grande poder na escolha de quem assumiria o trono na sequência.
“Elas acabam tendo uma uma influência na vida dos reis maior que o próprio pai, o rei anterior. Esse papel, ao que tudo indica, se mantém em Palmares, além da participação das mulheres como guerreiras militares, o que também a gente tem registros importantes disso. Isso é uma coisa que aparece justamente na figura da Akotirene”, afirma a historiadora.
“Nessa sociedade centro-africana se tinham lideranças femininas”, diz Danilo Marques, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Alagoas. “No Brasil uma dessas lideranças é Akotirene. A ideia é que Akotirene e Aqualtune seriam lideranças de Palmares. Aqualtune enquanto uma liderança da realeza, e Akotirene enquanto uma liderança espiritual, de Congo-Angola, que vem da África central”.
A história se mantém viva na prática e nos estudos daqueles e daquelas que vivem nas comunidades remanescentes quilombolas nos dias de hoje. O quilombo Muquém, no município de União dos Palmares (AL) —região onde se situava o histórico quilombo chefiado por Zumbi—, foi fundado por cinco irmãs após a dissolução de Palmares em 1695, segundo os relatos orais.
No entanto, nem sempre foi permitido contar a origem dessa formação na comunidade, conforme relata a professora Angela Nunes, descendente direta de Camila Nunes, uma das irmãs fundadoras.
“Antes, os mais velhos sempre questionavam sobre essa história, que não era para passar isso para os jovens. Com o passar do tempo, foi quebrando esse tabu e foi acontecendo esse esclarecimento da importância dessas mulheres para nossa comunidade de fato”, conta.
Ensinando alunos de 3 a 4 anos em uma escola da região, Angela procura manter a tradição e passar às crianças o que a história diz sobre os quilombos.
“O papel da liderança, no meu caso, de professora, é sempre buscar valorização da nossa cultura na comunidade por meio das crianças, esse é o nosso papel. Trazer esse resgate para nossas crianças e jovens para que eles possam saber a importância desse papel.”
Hoje, o Muquém segue sob liderança feminina. Conhecida como Dorinha Cavalcanti, Maria da Dores assumiu a presidência da associação de Muquém em 2010 após uma grande enchente que atingiu a região, obrigando os moradores a se reestruturarem totalmente.
“A gente precisou se organizar para poder buscar as políticas para comunidade e também para poder fazer esse resgate de identidade e dos costumes quilombola que a enchente acabou com tudo, e aí a gente começou a se organizar começamos a fazer reuniões”, conta.
Além da associação de moradores, foi formada uma união de mulheres em Muquém. Para Dorinha, a função é nítida. “Fortalecimento da mulher, eu acho que é fundamental. Essa organização nos deixa mais fortes.”
Para Ângela, houve distinções entre líderes homens e mulheres. “Quando o presidente era um homem, a gente podia perceber [a diferença] em termos de conversa, de diálogo. Hoje, com as mulheres, o diálogo é cada vez melhor e nos entendemos melhor”.
Desde as estruturas dos reinos no continente africano, até a replicação dos quilombos nas Américas, como em Palmares, as mulheres já desempenhavam o papel de guerreiras, assim como participavam da agricultura e da religiosidade.
Apesar da ausência de documentação da existência da famosa figura de Dandara, tida como guerreira de Palmares e esposa de Zumbi, os pesquisadores afirmam que ela, sendo real ou fictícia, representa e sintetiza o papel de diversas guerreiras quilombolas do período.
“Dandara, existe enquanto uma grande representação da luta da mulher negra no Brasil sendo construída pelo movimento negro brasileiro, sobretudo de movimento de mulheres negras brasileiras”, diz Danilo Marques, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Alagoas.
O nome de Dandara aparece pela primeira vez no romance Ganga Zumba, de João Felício dos Santos. “A figura da Dandara, mesmo que ela não tenha existido na maneira como as informações chegam, a partir de relatos orais para a gente, ela falam sobre essa essa experiência feminina”, diz Ynaê.
“A história da escravidão no Brasil é uma história absolutamente longeva e violenta. E que nos ordena em grande medida, até hoje, em alguns aspectos. Ela é também a história da resistência a essa escravidão, então acho que Palmares tem esse lugar especial e de representatividade, e um lugar de beleza também, mas sobretudo de uma ação negra”, diz Ynaê.
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